sábado, 26 de dezembro de 2009



Nem sempre as adopções são um porto de abrigo com desfecho feliz.
Aqui não há culpados.
Mas é sempre uma tragédia quando uma criança é devolvida à instituição.
Apesar de a taxa de insucesso ser pequena, um caso é sempre de mais.


O sonho era muito antigo. Sempre quis ter uma criança sua. Ao fim de dois anos, Teresa pôde finalmente levar Soraia, de 11 anos, para casa. Uma criança de raça africana que vivia desde bebé numa instituição por negligência e maus-tratos dos pais biológicos. Até ter direito a conhecer Soraia, Teresa passou por um processo longo e difícil. A sua vida foi escrutinada. Analisada ao detalhe. A família, a casa, o ordenado, as motivações, o seu equilíbrio emocional. Durante meses, teve de dar constantes provas do seu amor e capacidade para merecer ter uma pequenina ao seu cuidado. Passou por entrevistas, burocracias, dossiês, encontros, avaliações.

A primeira vez que falaram, não houve abraços nem beijinhos como nos filmes. Afinal de contas, não se conheciam. Havia muito para conquistar. Pequenos passos foram sendo dados a cada dia. Ao fim de uma semana, a Soraia tinha a mala pronta. Ia viver para casa de Teresa. Pela primeira vez, a menina tinha um quarto só para si. Com brinquedos, paredes enfeitadas, roupas a estrear. As duas deram os primeiros passeios. Brincaram juntas. Era uma nova vida para ambas. Tudo corria bem.

"Não és minha mãe"


Dois meses depois, a Soraia passou a ir à escola. Não fez muitos amigos. Nem sempre era obediente. Por vezes era mesmo insolente, violenta. A mãe chegou a perder a cabeça e a dar-lhe alguns estalos. "Não és minha mãe! Não quero viver aqui!" - gritava a criança. Teresa passou a questionar-se: será que tinha tomado a atitude certa? Não se teria precipitado? Estaria à altura de tal tarefa? Fora isto com que sonhara? Esta criança alguma vez iria chamar-lhe mãe? Teresa estava perdida. Impotente. Tinha dúvidas. Soraia não parecia a mesma menina querida que conhecera na instituição.

Cinco meses depois. Soraia regressou à instituição. Teresa ficou devastada. Um caco emocional. Foi a equipa técnica de adopção que veio buscar a Soraia. Ela própria pediu para voltar. No relatório, Teresa foi considerada demasiado rígida na transmissão das normas e que aplicava punições desadequadas. Também perceberam as suas expectativas e a sua frustração. Teresa ainda acredita que fez o seu melhor. Amou-a como soube.

Instituição é a casa que conhece

Regressada ao ponto de partida, Soraia sentiu-se muito aliviada por sair deste processo. Para ela, foi um sonho que se desvaneceu. Nunca mais quis voltar a ser adoptada e integrada numa família. Hoje, com 16 anos, a única casa que conhece é a instituição, onde partilha o espaço com dezenas de outras crianças sem pais, mas não se importa.

Neste processo não há culpados. Há falhas. Os adultos chegam cheios de sonhos e expectativas e os miúdos têm histórias pesadas, traumas e falhas emocionais difíceis de reparar. Por muito rigoroso que seja o processo, é impossível anular o risco. Alexandra Lima, directora do serviço de adopções da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é avessa à palavra 'culpa'. "Há sempre co-responsabilidade no insucesso da adopção. Acredito que a maior parte das pessoas tem a melhor das intenções, mas confrontada com a realidade não consegue dar conta da situação. Devemos evitar juízos ou censura - porque há sempre partes imprevisíveis neste processo. No caso desta menina, institucionalizada desde os seis meses de idade, não há qualquer possibilidade de ela conhecer o sentimento de pertença. Uma criança abandonada, entregue a si própria, tem dificuldade em ligar-se, em confiar no adulto, por ausência de figura de referência". Muitos pais adoptivos não conseguem lidar com isto.

Casos residuais

Felizmente, em Portugal, estes casos são excepcionais. O número de adopções de insucesso representam uma gota no oceano. De 2003 a 2009 foram integradas em regime de pré-adopção 386 crianças pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, das quais apenas 14 foram devolvidas. É uma percentagem de insucesso baixa, de 3,6%. A nível nacional, os dados da Segurança Social pouco diferem: num universo de cerca de 600 integrações por ano, 22 processos falharam em 2008, 17 em 2007, 33 em 2006 e 23 em 2005 - isto num total de 74 pré-adopções sem sucesso em quatro anos.

Quando os pais não aguentam. Há casos em que são os próprios pais a reconhecer a sua incapacidade para lidarem com a situação. Após a fase de enamoramento, a vivência do quotidiano revelou-se cada vez mais insuportável. Hugo, um menino de cinco anos, passou a cuspir a comida, a partir pratos, a dar dentadas na mãe, a pontapear tudo. "Houve uma explosão imprevisível da parte dele", recorda Alexandra. Ao fim de três meses a família adoptante estava totalmente desgastada. No limite. Não aguentou. Foram os técnicos que puseram termo a esta história em defesa dos interesses de Hugo. Para trás ficou uma família num processo de luto. "É claro que uma 'devolução' implica sempre um sentimento de rejeição para a criança e uma diminuição da auto-estima. O acompanhamento psicológico é reforçado. Mas as famílias também não passam ao lado da dor - pelo contrário. São obrigadas a reavaliar-se, a pôr-se em causa. Como mãe, eu também não suportaria tantas agressões reiteradas, todos os dias", confessa Alexandra.

Não é por falta de filtros e de análise que há adopções que falham. Todo o processo até à adopção passa por uma série de etapas. Quando um casal ou um candidato(a) singular manifesta vontade de adoptar uma criança é submetido a uma avaliação social e psicológica durante seis meses. Além dos requisitos legais, os técnicos têm com os candidatos três grandes entrevistas exploratórias, com o objectivo de conhecer melhor o seu perfil. A primeira sobre a motivação dos adoptantes e como surgiu o projecto de adopção. "Por exemplo, há pessoas que chegam aqui e dizem que gostavam muito de ajudar uma criança. Outras que se sentem muito sozinhas, que nunca constituíram família. Nenhuma dessas motivações é válida". A segunda entrevista aborda o genograma da família. Ou seja, apura que círculo familiar existe. E a terceira sobre conjugalidade (funcionamento do casal em família) e parentalidade - a forma como os candidatos se vêem como filhos e o que sentem relativamente aos seus pais (futuros avós da criança). "Isto é particularmente importante porque uma boa vinculação dos filhos significa confiança e segurança, fundamentais para uma boa adopção", justifica Alexandra. Depois, são avaliadas as condições sociais, económicas e de integração dos adoptantes. Assim como a gestão das expectativas. "Não se deve idealizar muito, sonhar demasiado alto". O último degrau antes da criança ir para casa dos novos pais (pré-adopção) é o "matching", que consiste em encontrar os pais certos para aquela criança. Apresentada a proposta aos pais, estes reflectem, e caso aceitem, iniciam-se os encontros com a criança, na instituição. Ao fim de cinco dias, se tudo correr como é suposto, a educadora vai pôr o menino a casa dos novos pais. Segue-se uma visita, no dia seguinte, e depois, o acompanhamento passa a ser mensal.

Quando o amor não chega

Anita Tedaldi era uma mãe de cinco filhos a viver nos EUA: quatro meninas, e um menino adoptivo, Dan. Ao fim de 6 meses, constatou que não se estava a ligar ao filho da mesma maneira que o tinha feito com as suas filhas biológicas. Nunca lhe ocorreu que isto pudesse acontecer. Sempre desejou um menino e ainda tinha viva na memória a excitação que sentira nas seis horas que fizera de carro para o ir buscar. Durante meses, Anita lutou consigo própria para perceber se a estranheza que crescia dentro dela era real ou um medo temporário. Até que um dia colocou a hipótese de devolver Dan. E ficou horrorizada.

Este testemunho foi dado por Anita ao jornal britânico "The Guardian", antes de se remeter ao silêncio e se concentrar no projecto de escrever um livro onde conta pormenorizadamente a sua traumática experiência. Nos Estados Unidos, Anita e a sua família foram ferozmente apontadas a dedo e criticadas pela sociedade. No entanto, ela garante que o amou o melhor que conseguia.

A percepção de que Dan não se estava a vincular a ela e às irmãs foi o início do tumulto interior de Anita. Mais tarde, ela própria admitiu que sentia a mesma distância. Por muito que não quisesse. "A constatação de que não tinha com Dan a mesma proximidade que tinha com as minhas filhas abanou as minhas fundações mais profundas". Então começou o seu inferno pessoal. "Em certos momentos, estava determinada a ficar com Dan, porque o amava. Um minuto mais tarde, percebia que não era a mãe que poderia ser".

A angústia foi aumentando, até Anita concluir que, provavelmente, outros pais poderiam ser melhores para o seu bebé. Quase dois anos depois de ter chegado, Dan passava do colo da mãe Anita para os braços de outros pais. No dia da 'troca', pediu um instante a sós com o seu filho. "Inspirei profundamente o seu cheiro, toquei-lhe a pele macia, afaguei o seu cabelo. Nos nossos últimos momentos a dois, olhei-o longamente nos olhos, disse-lhe que o amava, e que tinha feito o meu melhor". Nas semanas seguintes, Anita sentiu uma série de emoções: "desespero, alívio, tristeza, culpa, vergonha, aceitação". Mas rendeu-se à ideia de que Dan estava melhor com a sua nova família.

As causas do insucesso

A realidade portuguesa demonstra que são as crianças mais velhas - com muitos anos de instituição - a protagonizar a maior parte dos insucessos na adopção. Isabel Pastor, coordenadora do serviço de adopções do Instituto de Segurança Social, considera que, por vezes, há "impreparação" dos candidatos. "A maior parte quer adoptar porque não tem filhos e vem colmatar uma insuficiência". E isso é meio caminho para o fracasso. Apesar da taxa de insucesso ser diminuta, não deixa de ser uma prioridade para as instituições reduzi-la. Porque um caso de 'devolução' é sempre de mais. Para combater o problema, entrou recentemente em vigor o Plano de Formação para a Adopção. Implica não só uma melhor formação dos técnicos envolvidos no processo de adopção, mas também uma formação obrigatória para as famílias adoptantes. "Trata-se de um plano longo, com cinco sessões de várias horas cada", explica Isabel. Daqui para a frente, espera-se diminuir ao máximo os riscos de insucesso nas adopções. E na verdade, não são raros os casos de pais que, vendo uma pré-adopção falhar, voltam a tentar e conseguem. Afinal, há (quase sempre) pais certos para cada criança. OS NOMES DE TODOS OS ENVOLVIDOS SÃO FICTÍCIOS, PARA SUA PROTECÇÃO

(Texto publicado na edição 12 Dezembro 2009, Revista Única) - Bernardo Mendonça e Katya Delimbeuf (www.expresso.pt)

13:09 Quinta-feira, 10 de Dez de 2009 - http://clix.expresso.pt/quando-os-filhos-adoptivos-sao-devolvidos=f552257

Sem comentários:

Enviar um comentário